O beijo na boca da urna!

Eram um domingo para derrotar a tristeza e despertar a esperança, naquele 17 de dezembro de 1989, o eleitor brasileiro decidiria pela primeira vez depois de 25 quem seria o seu próximo presidente da República, Lula e Collor disputavam um 2º turno marcado pela polêmica e pelo golpe abaixo da linha de cintura. 

Collor não poupou o seu adversário de constrangimentos, favorecido pela edição do último debate exibida pelo Jornal Nacional partiu com vantagem sobre o operário Lula que pela primeira vez ousava em se candidatar, trazendo para o protagonismo político a classe trabalhadora sedenta de participação.

Naquele 17 de dezembro, Tutty Vasques na revista Domingo do JB, refletia a esperança de  milhões de eleitores que votaram com um sonho na cabeça e uma idéia na mão, eram tempos analógicos, a urna não era eletrônica, o palanque sim. A edição manipuladora do debate entre os presidenciáveis exibida pela Globo, distorceu o desempenho dos candidatos, favorecendo Collor e prejudicando Lula. Mas independente do resultado a esperança de dias melhores prevaleceu naquele domingo.



Dê um beijo na boca da urna!

Colunista avisa: chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor

Abra os olhos. Ponha o pé esquerdon para fora da cama. Abra a janela. Respire fundo. Sorria companheiro, nunca fomos tão brasileiros. Nunca tivemos tanta chanbce de fazer um país bacana, tão bacana quanto a voz de Marina, as pernas de Elba Ramalho e o pescoço da Silvia Pfeifer. Um tesão de país! Estou orgulhoso, orgulhosamentede viver aqui neste Brasil, neste Rio de Janeiro, politizado, esquerdão por natureza. Um lugar que não tem medo de ser feliz, que sabe identificar num operário a sua mais completa tradução. Meu Deus, o povo sabe votar, o povo é inteligente. Tô com uma vontade danada de acordar toda essa gente humilde do Encantado ao som de Aquarela do Brasil. Não posso olhar para o Mestre Zu que choro copiosamente. Nós viramos essa porcaria, Zu! Vivemos um tempo de esperança, sem papas na língua, um tempo de sinceridade de caráter, de paixão e justiça. É a tua cara, meu amigo! Derrubamos o muro invisível que nos fazia impotentes. Escove os dentes, meu irmão, hoje é dia de eleição!

Via passar! Tá chegando a hora! Pegue as crianças e vá a pé para a sua zona eleitoral. A cidade está linda, cheia de vida. Bom dia, companheiro brizolista! Que bom vê-lo por aqui, amigo tucano! É Freire, meu bem! Cumprimente o pessoal da fila. Cadê a patroa? A minha também vota em outra zona. Mas nem por isso nós vamos esquecer as alianças, certo? Foi um longo caminho, gente, mas nóps chegamos aqui juntinhos. Tentaram nos soterrar, nos envolver com multinacionais, ofuscar nossa estrela com a suástica, nos chamaram de analfabetos, de despreparados, queríamos discutir e nos chamaram de patrulheiros, a Beliza Ribeiro deu tudo de si, usou todos os seus truques, de pobres nos acusaram, como se pobres não fôssemos. Olhe-se no espelho, companheiro! Calma, as coisas vão melhorar. Tenho certeza de que vão!

Eles estão suando frio, com medo, muito medo! Pânico pela proximidade da mudança que se anuncia. Não vejo a hora de entrar no escrutínio, de votar gostoso, de um dia falar para os meus filhos que papai votou no sapo barbudo, que papai era inacista, sim, que papai ajudou a engrossar o coro de oleoleoleolá na Praça da Apoteose. Que a titia fez o mesmo, a vovó também e o vovô... O vovô vai mudar seu voto na boca da urna, tenho certeza que vai! Tu és um Vasques, pai! Pronto, fiz o meu xis, uma filigrana a mais nessa pá de cal que o país atira na sepultura da política escorregadia de almofadinhas formados em cursos de oratória da faculdade da enganação. Tá limpo prá gente. Todo mundo já sabede que o Bisol e Brizola não são uma dupla caipirade sucesso. Todo mundo sabe o quanto Mário Covas é de esquerda. Nosso candidato, como se sabe, não articula bem o portugu~es. Diz o que pensa e pronto.

Pode ser que a gente não chegue lá dessa vez, pode ser! Mas do jeito que está, este país não vai ficar. Seja qual for o resultado desse pleito. Já estou de volta nas ruas, deixei os amigos na fila da zona e vou agora fazer o que sem pre faço em dia de eleição.Bater perna, sair pela cidade, andar sozinho é emocionante nessas ocasiões. Faça o mesmo, companheiro, e quem sabe a gente não se encontra na Vieira Souto. Cumprimente o povo entricheirado das coberturas. Não se deve provocar os derrotados. Prazer estar contigo, companheiro Lula. Valeu!

P.S. Papai Noel vem aí de vermelho no rastro de uma estrela.

Fonte: Tutty Vasques, Jornal do Brasil, domingo, 17 de dezembro de 1989.

Decididamente, eram tempos de ousadia e esperança.

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